sexta-feira, setembro 26, 2003

A moeda de três lados

Um amigo meu me falou sobre uma mulher que ele havia conhecido de forma intensa, mas que continuava sendo um grande mistério para a sua cabeça acostumada a coisas meio paradas e sempre confortáveis.
Ele gosta de saber onde pisa e de impor um certo controle nas suas coisas, mas com ela isso nunca era possível. Era mais ou menos como entrar em uma sala escura que não parasse de girar: a gente nunca poderia saber para que lado ficaria a saída.

Uma coisa interessante que ele me contou foi a comparação da personalidade dela com uma moeda e seus três lados. Isso me pareceu incoerente, mas quando ele mencionou a parte externa da moeda, entre os dois lados, entendi um pouco melhor o tipo de impressão que aquela mulher havia causado nele.

Primeiro ele me contou detalhes a respeito do primeiro e mais perigoso lado dela.
Acabei ouvindo horas e horas de estórias sobre o efeito da risada escrachada e do cinismo irônico que ela adorava distribuir a quem estivesse ao alcance. Era uma verdadeira metralhadora giratória detonando a qualquer desavisado que ousasse criticar um autor que ela curtisse, uma música que estivesse sendo trilha sonora de momentos felizes ou as suas escolhas de roupas e acessórios.
Ela adorava intimidar as pessoas com a sua inteligência, charme e beleza. Parecia que rolava uma competição para saber que era o mais poderoso e interessante.
Esse tipo de postura não agradava nada ao meu amigo, mas ele continuava tentando descobrir algo menos letal na dona daquele colo salpicado de sardas. Acho que ele acabou chegando à conclusão de que ela se “montava” desse jeito só para não correr o risco de se sentir inferiorizada em alguma situação.

Depois ele me falou do poder de sedução que vinha daquela boca hábil em dizer coisas sinceras para agradar alguém por conta de objetivos nem tão sinceros.
Ele mesmo acabou “vítima” de uma sedução muito bem armada e temperada com prosecco, muffins de café e acid jazz.
Mesmo tendo adorado a forma intensa com que ela fazia amor, ele continuava com a pulga atrás da orelha com relação à sinceridade dela. Era como se ela quisesse provar algo para si mesma ao levá-lo para a sua cama e tomar toda a iniciativa da transa.
Era a confirmação da competição.

Felizmente ela não o expulsou de casa logo após se satisfazer. Ainda rolaram alguns momentos de carinho, conversa despreocupada e divisão de banheiro.
Segundo ele, foi preciso sair da cama dela para começar a ver resquícios do que ele acreditava ser a verdadeira natureza daquela mulher. Foi somente quando ela saiu da cama, colocou um hashi no cabelo, armou as madeixas no alto da cabeça e vestiu um robe de seda que ele parou de se sentir em uma competição.
Aparentemente, ao “descer do salto” ela mostrou um lado mais calmo, verdadeiro e sereno, coisa que o agradou muito.
Ele teria ficado um ano inteiro contando as suas sardas e falando sobre comida vegetariana, mas ambos tinham que voltar aos seus compromissos e assumir de novo as suas carrancas e personagens.
Acho que foi exatamente isso que ele mais lamentou já que nunca mais ele conseguiu chegar até o terceiro lado daquela mulher. Nunca mais ele achou o lado mais inacessível aos reles mortais.
Nunca mais ele viu aquele robe e aquelas sardas livres de máscaras.
Acho que ele lamenta isso até hoje.

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