sexta-feira, março 04, 2005

Insatisfação patológica

Era impressionante como ele nunca ficava satisfeito com nada.
Não havia a menor possibilidade dele se sentir completo seus relacionamentos, seus amigos, sua barriga, sua conta. Nada. Simplesmente ele perdia momentos bons para ficar olhando para a grama do outro lado.

No trabalho essa insatisfação era mais leve. Demorava um tempo até que ele se enchesse o saco de tanta obrigações e apertasse o botão do ...oda-se.
Quando isso acontecia, até o faxineiro percebia as asneiras que ele fazia. Coisas como ver filmes pornôs em salas de treinamento, fazer corrida de obstáculos em corredores com câmeras, comer lanches destinados a clientes e coisas do gênero.
Ele parecia uma criança de tão irresponsável. Na verdade ele sempre foi definitivamente imaturo. Não havia discernimento para nada e demorava séculos até que ele percebesse o buraco onde havia se enfiado.
Por vezes essa percepção se manifestava na forma de uma demissão. Ou de broncas repetidamente suaves e ineficazes.
Foi assim que ele jogou fora praticamente três anos da carreira e em dois empregos diferentes. A única justificativa aparente era a busca de algo melhor, mas isso perdia totalmente o significado quando se comprovava que nada havia sido feito para crescer onde se estava. Ele apenas passava o tempo e vivia. Ah, e reclamava também.
A comédia de erros só parou quando um amigo falou a sua língua e bêbado disse que ele estava se desperdiçando. A chamada de um igual bateu forte e ele acordou para a vida.
Pelo menos a profissão havia entrado nos eixos.

A sua relação com o álcool foi igualmente escrota. De completo abstêmio para um mergulhador de poças de banheiro de boate foram necessárias apenas algumas semanas.
Novamente ele desligou o cérebro e abriu a boca. Novamente ele errou a mão. Novamente ele pagou o preço: duas batidas sérias, uma lesão grave e muita sorte por ainda caminhar neste mundo.
Tudo isso por que ele achava que era legal fazer parte do grupo dos que bebem. Tudo por que era chato fazer parte do grupo dos nerds, que ele começou a largar na escola. Tudo por que era vergonhoso ser praticamente virgem ainda fazendo faculdade.
Tudo por que ele não sabia nem queria pedir ajuda.

Por último, o mais complicado: as mulheres.
De completo nerd a viciado em sexo casual, ele correu milhares de riscos que fariam o pessoal do Gapa surtar bonito.
Na sua época de caça, ele abusava da hipocrisia de não se considerar colecionador. Era ridículo vê-lo administrar quatro mulheres ao mesmo tempo. Nem todas o amavam, mas algumas terminaram bastante judiadas e isso não ajudou nada os que vieram depois.
Apesar de ser verdadeiramente nocivo, ele não se considerava em canalha. Era apenas a loucura por experiências e a vontade de números. A intensidade era secundária, a satisfação era esquecida, a continuidade era desconsiderada. O que importava era a coleção.
E ele conseguiu se encher de troféus. A sua lista era digna de um atleta, até que apareceu alguém que bancou aquela atitude e se dispôs a amá-lo.
Não se sabe bem por que, mas ele se permitiu viver aquilo e abdicar do vício. As crises de abstinência foram assustadoras e quase sempre acabavam em fumaça, whisky e perfume barato. A proporção variava com a companhia, mas sempre havia a tríade.

Hoje em dia ele segue em recuperação, mas todo cuidado é pouco.
Sua insatisfação faz parte tão integrante da sua alma que é preciso muito cuidado com as sabotagens. Ele sempre foi louco por isso e definitivamente não é hora para voltar à infância. Ele precisou crescer e luta para manter o prêmio. Um prêmio que veio do acaso e que não quer deixá-lo. Nem ele quer isso.
Na verdade, ele quer o de sempre, ser feliz, mas talvez só agora ele tenha alguma idéia de como fazer isso. Só agora ele está deixando de olhar para o umbigo.
Parece que ele está virando mocinho e já já pode se casar.

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