Mimos
Neste ano acabaram acontecendo duas coisas que me deram acesso a algo que eu deveria ter visto há muito tempo.
Primeiro eu consegui parar um pouco na frente da TV e vi a programação da Sportv. Até aí nada de extraordinário já que ver televisão é um hábito que nem todo mundo aprecia e que muitos renegam fanaticamente.
O grande diferencial foi o tipo de cobertura que a mesma Sportv resolveu dar para as Paraolimpíadas de Atenas. Para quem não sabe, de uns tempos pra cá, os Jogos Olímpicos tradicionais vêm sendo acompanhados por jogos Paraolímpicos, onde acabamos vendo gente com ainda mais determinação e vontade de vencer do que os atletas tradicionais.
Li em algum lugar que bem sempre as Paraolimpíadas foram realizadas no mesmo lugar dos jogos tradicionais, mas acho que fica muito mais legal assim já que a atenção do mundo fica focada no mesmo lugar por um pouco mais de tempo.
Outra coisa que eu não sabia é que existem categorias dependendo do grau de deficiência da pessoa. Isso faz muito sentido já que não parece muito justo colocar uma pessoa que não tem braços nem pernas para competir com alguém que "só" não coordena bem o movimento do braço esquerdo.
É justamente aí que acabei ficando ainda mais impressionado: ver um chinês sem braços ganhar a prova dos 200m medley na natação foi demais!
Apesar dele estar competindo com pessoas com um grau de deficiência semelhante, dava para sentir que a vontade de viver e de vencer do chinesinho era muito maior do que eu algum dia sonhei. Além de me emocionar com aquela força de vontade, acabei começando a reconhecer os meus mimos. Mais tarde isso ficaria bem mais explícito.
Outro evento ligado a essa auto-análise aconteceu com o Professor: ele teve seu carro roubado e acabou tendo que fazer o "reconhecimendo do corpo" em uma delegacia do Jardim Ângela. Pelo que ele me disse, toda a fama de feiúra e barra pesada que o lugar sempre teve é mais do que justificada. Apesar de estar cercado de policiais bem armados e preparados para ataques, ele se sentiu extremamente inseguro e vulnerável.
Mas foi outro tipo de sentimento que me chamou a atenção. O que quero contar aqui é a criação do conceito de mimo: depois de voltar para casa, o Professor olhou para seus problemas e começou a se sentir envergonhado de reclamar tanto da vida.
Enquanto ele tinha que lidar com o corte da grama da casa de Mauá, com a preguiça do caseiro ou com os problemas do trabalho, as famílias da favela não sabiam se seus filhos voltariam inteiros da escola ou da compra de um pão na padaria.
Para eles, a vida era muito mais básica: era sobreviver ou não.
Antes que surja algum tipo de pensamento da escola MST, não tenho a intenção de julgar ninguém e nem acredito que a culpa pela miséria de uma família da favela possa ser atribuída a outra do Tucuruvi. Não desejo me considerar culpado por ter tido oportunidades que outros não tiveram. Não desejo e não farei isso.
Prefiro me conscientizar daquilo que o Professor chamou de mimos, por que é isso que tenho que enfrentar como problema: nada mais do que mimos.
Problema é que aquele tipo de família tem. Problema é o que um cara sem braços tem para realizar atividades banais como escovar os dentes. Problema é encarar a alegria de viver que muitas dessas pessoas demonstram. Problema é parar de olhar para o umbigo, agradecer pelo que temos e tentar viver cada vez melhor com nossas limitações. Problema é assumir os mimos e tentar ser um pouco mais feliz.
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